O Brasil sempre foi terra fértil para encontros culturais, diásporas e reinvenções. E, em meio a esse solo vivo e pulsante, surgiu um artista que tem desenhado pontes entre continentes, ritmos e afetos: Izy Mistura. Cantor, compositor, poliglota e verdadeiro “embaixador da alegria africana”, ele é um daqueles nomes que não passam despercebidos — seja pela voz que ecoa ancestralidade e esperança, seja pela trajetória que combina coragem, talento e resiliência.

O Papo Pop teve o privilégio de realizar uma entrevista exclusiva com Izy, que está em plena fase de reinvenção artística. Conhecido nacionalmente pelo Duo Dois Africanos — sucesso absoluto no programa Superstar, da Rede Globo — o artista agora mergulha em novas sonoridades com o álbum E.A.P.F (Enquanto Aguardo a Próxima Fase). Em um papo profundo, generoso e inspirador, ele relembra sua caminhada do Togo ao Brasil, reflete sobre pertencimento, diáspora africana, adaptação cultural e, claro, os bastidores de sua arte.
Sobre a trajetória

Você começou sua trajetória musical no Togo com o grupo Street Angels. Como foi esse início e o que te motivou a seguir na música?
Eu era basicamente um adolescente muito musical — já havia cantado em coral, feito aulas de piano, essas coisas. E então me apaixonei pelo hip hop. Comecei dançando break e, depois, migrei para o rap. Formei o grupo com colegas do ensino médio.
O grupo estava começando a ganhar visibilidade, tínhamos uma música tocando na rádio. Decidimos gravar a próxima, chamada “I Know”, em uma gravadora famosa do país, apenas para ter a assinatura deles na faixa. Deu tão certo que acabamos fechando um contrato. Em dois meses, já estávamos estourados na mídia local e fazendo grandes shows.
Curiosamente, nessa música eu cantava o refrão e um verso mais melódico, em vez de fazer um rap, como sempre fazia. A gravadora gostou tanto que decidiu que eu deixaria de ser o quarto rapper do grupo para me tornar o cantor oficial.
Foi aí que precisei desenvolver minha voz, descobrir meu timbre e aprender a explorá-lo melhor.
Quando e como surgiu a decisão de vir para o Brasil? O que mais te chamou atenção no país?
Foi algo completamente inesperado. Na época, eu não conhecia ninguém que vinha para o Brasil ou falava português — a maioria ia para a França ou para os Estados Unidos. Uma tia minha me falou de uma bolsa de estudos no Brasil, e eu resolvi tentar, só porque ela sugeriu. Fui o último a me candidatar e meu visto foi o primeiro a sair. E cá estou. (risos)
Hoje, vejo que era o meu caminho. Um ano antes disso, eu jamais teria imaginado que viria parar aqui.
O Duo Dois Africanos conquistou o público no Superstar e marcou uma geração. O que aquela experiência representou para você, como artista e como pessoa?
Foi um divisor de águas. Antes do Superstar, éramos dois jovens africanos fazendo música para dar voz aos estudantes africanos. Depois, nos tornamos uma ponte entre “a África brasileira” e “a África do outro lado do mar”. Uma ligação entre dois mundos irmãos, separados por séculos, que ansiavam por se reencontrar.
Profissionalmente, também foi marcante. Vocalmente, existe um Izy antes e outro depois da Nina Pancevski, preparadora vocal do programa. Ela nos acompanhou inclusive na gravação do primeiro álbum na Som Livre. O mesmo vale para o produtor Torcuato Mariano, que nos ajudou a definir o nosso som.
Ganhar projeção nacional e lidar com o ritmo intenso de uma gravadora foi transformador. Como pessoa, amadureci muito.
Em algumas culturas africanas, há rituais de iniciação para marcar a passagem da juventude para a vida adulta. Para mim, o Superstar foi esse rito.
Quais foram os maiores desafios que você enfrentou nessa caminhada entre o Togo e o Brasil? E quais momentos você guarda com mais carinho?
Os maiores desafios foram, sem dúvida, de crescimento pessoal e adaptação. Mas como dizem: o ouro e o ferro são forjados no fogo.
Momentos preciosos? Muitos! Só nossos primeiros passos em João Pessoa já dariam um livro: o primeiro show no Espaço Mundo, o primeiro clipe no centro histórico, a primeira música no Mutuca Estúdio, os primeiros shows em outros estados… Depois vieram os capítulos em Fortaleza e em São Paulo. Precisaríamos de um dia inteiro para contar tudo!
Sobre o Brasil e a cultura

Você vive no Brasil há quase uma década. Como você vê essa troca cultural entre Brasil e África? Quais semelhanças mais te marcaram?
Lembro que, morando em João Pessoa, às vezes parecia que eu podia pegar um ônibus direto para minha casa em Lomé, de tão parecida que era a cidade. Só percebia que não dava porque todo mundo falava português. (risos)
Temos muito em comum! Mas, até pouco tempo, havia pouca troca. As informações sobre a África que chegavam aqui eram limitadas, quase sempre mostrando pobreza. Ao mesmo tempo, muitas pessoas aqui têm raízes africanas, mas não tinham acesso à cultura de lá. Isso mudou bastante.
Sinto que o Dois Africanos teve um papel importante nesse processo. Fomos uma faísca em uma palha que já estava pronta para queimar. Claro, há muitos outros fatores envolvidos, como o movimento global do Afrobeats. O mundo finalmente está ouvindo a África — e já era hora!
Na sua visão, o que o Brasil tem de mais “africano” que às vezes nem os brasileiros percebem?
Muita coisa! A culinária, os ritmos, as cores, a alegria, a hospitalidade… e principalmente a resiliência. O mundo pode estar desabando, e o brasileiro ainda arruma um motivo para sorrir ou fazer piada. Isso é muito africano!
Existem até palavras no vocabulário cotidiano que vêm diretamente do nosso continente — como “dengo”, por exemplo. O Brasil é profundamente africano, mesmo que por muito tempo tenha valorizado mais a herança europeia do que a africana. Mas isso está mudando. E fico muito feliz em ver esse reconhecimento crescendo.
Você se sente abraçado pela cultura brasileira? Como foi (ou é) construir esse sentimento de pertencimento aqui?
Com certeza! O Brasil tem um coração de mãe. É fácil se sentir amado aqui.
Claro, existem muitos “Brasis”. Cada região tem suas particularidades, e quem muda de estado percebe isso. Leva um tempinho para entender o novo contexto, mas depois, você já está em casa novamente.
Sobre a música nova e projetos
Seu novo single “Tamo Aê” traz uma mensagem muito positiva. O que te inspirou a escrever essa música?
Ela nasceu justamente dessa adaptação aos “muitos Brasis”. Quando o Dois Africanos se mudou para São Paulo, levei um ano e meio para aceitar. Meu corpo estava aqui, mas meu coração ainda morava no Nordeste.
Escrevi “Tamo Aê” no dia em que finalmente abracei minha nova realidade. Era um marco de aceitação. A música reúne tudo que aprendi nesse processo intenso que começou no Superstar e passou pelas turnês até a chegada na “Selva de Pedra”.
A canção fala muito de pertencimento e adaptação. Como essa vivência em São Paulo influenciou sua composição?
São Paulo é uma cidade mais cinza, onde as pessoas são mais reservadas. Para quem veio da África e do Nordeste, isso pode ser um choque. Mas, como digo na música: “Sim, existe amor em SP”. A questão é entender como esse amor é demonstrado.
O paulistano tem uma forma própria de amar — mais discreta, mas igualmente intensa. Quando você entende isso, São Paulo deixa de ser uma selva de pedra e vira um jardim de flores.
Você está trabalhando no álbum “E.A.P.F (Enquanto Aguardo a Próxima Fase)”. O que podemos esperar desse novo trabalho?
O EAPF mostra um Izy mais maduro e introspectivo. São músicas que escrevi para mim mesmo, em momentos em que eu precisava de palavras que não vinham de ninguém. Faixas como “Palavras de um pai”, “Aonde vão os sonhos não realizados?” e “Viva! Hoje!” foram escritas como abraços sonoros.
Escolhi cantar tudo em português — pela primeira vez sem misturar idiomas — porque quero falar diretamente com o Brasil.
Mas musicalmente, há muita diversidade de sons e ritmos. Cada faixa pede uma abordagem única, e estou curioso para ver como isso será recebido.
E sim, já tenho canções suficientes para um Volume 2.
O seu primeiro EP solo, “Rapper Poliglota”, mostrou sua habilidade com vários idiomas. Essa pluralidade vai continuar no novo álbum?
Vai continuar, mas de outra forma. No EAPF, a pluralidade está mais nos sons do que nos idiomas. Mesmo todo em português, o álbum reflete minha bagagem multicultural.
Perspectivas e visão de mundo
O que significa para você ser chamado de “Embaixador da Alegria Africana”?
Significa, primeiro, lembrar que preciso proteger minha própria alegria para poder compartilhá-la. A arte tem esse papel de alimentar a alma das pessoas. A alegria, para o coração, é como exercício físico para o corpo — essencial.
Que mensagem você gostaria de passar para os jovens imigrantes que sonham em construir uma nova história em outro país?
O mundo é grande. Às vezes, escolhemos um lugar, mas às vezes é o lugar que nos escolhe. E a vida é sobre encontrar esse lugar.
Mesmo que não pareça, há um motivo para termos nascido onde nascemos. Quando entendemos isso, levamos algo valioso conosco para qualquer lugar onde formos.
Se pudesse definir a sua trajetória até aqui em uma palavra, qual seria?
“Graça”.
E se pudesse escolher outra, seria “Gratidão”. Nenhum artista é grande sem o amor do público. Sou grato por cada pessoa que escolhe se deixar tocar pela minha arte.
Quais são os sonhos que ainda faltam realizar?
Tenho muitos! Gravar com Djavan, conhecer novos países, criar projetos sociais, investir em causas como a prevenção ao suicídio e o combate ao câncer, melhorar o sistema educacional no Togo…
E, acima de tudo, desejo que minha arte seja uma resposta de oração para alguém.