Na encruzilhada entre o tambor da ancestralidade e a distorção elétrica da rebeldia contemporânea, a banda Wil Cor & Eletrocores fincou sua bandeira em São Paulo com o show “Valei-me” — um rito sonoro que ecoa como súplica, feitiço e manifesto. A estreia na capital paulista não foi apenas mais uma apresentação: foi a ocupação simbólica de um espaço que historicamente tensiona o encontro entre tradição e vanguarda, identidade e invenção.
A escolha do Centro Cultural Casa Di Caboclo como palco inaugural revela muito da intenção do grupo: “é simbológico”, como define o vocalista e compositor Wil Cor, com o vocabulário peculiar de quem transforma a palavra em gesto poético.
“Estamos não só resistindo, mas insistindo, e muito.” Afroindígena de origem, ele faz do corpo e da voz um lugar de travessia entre apagamentos históricos e reencantamento coletivo.
No coração do show está a evocação de dois ícones paraibanos: Cátia de França e Chico César, alçados ao panteão pessoal de Wil como “santos padroeiros da música rica”. A devoção é afetiva e estética — “furamos o CD Aos Vivos de tanto ouvir”, relembra — e se materializa em composições que tratam ambos como entidades tutelares. “O único limite para homenageá-los era o céu”, diz. Daí o nome do show: um grito de invocação que é também proteção.

A transgressão como forma
A proposta estética da banda escapa de categorias fixas: coco encontra heavy metal, aboio desliza no groove, o funk pulsa em paralelo com o afrobeat. É uma sonoridade de fronteira, feita de contaminações e encontros improváveis.
“Quanto mais misturado, melhor”, resume Wil. A química se dá no embate entre o violão de composição, os riffs de Sam Cesaretti e o trompete incendiário de Tarcísio em Chamas — “a cereja do nosso bolo”, define o vocalista, sem economia de afeto.
Mas não se trata apenas de experimentar por experimentar. Cada camada sonora é carregada de densidade simbólica. Em “Rio Tinto”, por exemplo, o passado colonial é confrontado com a vitalidade indígena presente. A composição nasceu de um episódio marcante: ao visitar a cidade homônima, Wil deparou-se com a estátua de um colonizador responsável por massacres, e logo depois participou de um ritual conduzido por Pajé Isaias. A música carrega essa ambivalência entre náusea e celebração.
Entre versões e visões
Ao contrário do cover domesticado, Wil Cor & Eletrocores preferem a “versão-sacrilégio”. Assim surge a releitura de “Beradêro”, de Chico César, com peso e suingue sem trair o coco original — arranjo proposto, inclusive, pelo próprio Wil, o “não instrumentista” da banda. E Chico aprovou: “é só falar com a editora e gravar”, respondeu ao ser marcado num reels.
Outro momento catártico é “Lamento Sertanejo”, interpretado ao lado da cantora Amandha. O encontro nasceu nos corredores da Universidade Estadual de Montes Claros, onde ambos estudaram, e se concretizou anos depois em São Paulo. Sem ensaio, sem rede de proteção, Amandha entrou no palco e deixou sua marca.
“A gente não quer, e às vezes nem sabe, tocar como an original”, brinca Wil. É essa liberdade que dá identidade ao projeto.
Fé em vinil e futuro
Além de ser lançado nas plataformas digitais, o EP “Valei-me” ganhou também uma edição em vinil — objeto de arte e fetiche, resistência física em tempos etéreos. “Hoje, ter um vinil é dizer que você gosta de arte”, comenta Wil. Mas mais que fetiche, é desejo de legado. “Daqui a alguns anos, alguém vai lembrar de uma banda que lançou um disco que elevava Cátia e Chico a santos da música.”
A performance registrada em vídeo e publicada no YouTube marca outro rito de passagem: pela primeira vez, a banda tem um registro técnico à altura de sua energia. “É uma oportunidade de mostrar a nossa pegada pra quem ainda não viu ao vivo — e pros contratantes também”, confessa.
E o futuro? Vem álbum por aí. Com oito a dez faixas, novas experimentações e o mesmo compromisso com a mistura, a denúncia e a fé. “Estamos compondo, tocando, experimentando… Isso importa. A gente tá vivo. E isso já é arte.”