Corpos em Movimento: a dança como liberdade no cinema de Gi Ismael
O Papo Pop fez uma entrevista exclusiva com a jornalista Gi Ismael sobre sua estreia na direção com o documentário “Como Se Ninguém Estivesse Olhando”, que vem ganhando reconhecimento nacional e internacional.
Existe um instante, entre o som e o gesto, onde o corpo se esquece do mundo, e só sente. É nesse espaço quase mágico, de espontaneidade e entrega, que nasce “Como Se Ninguém Estivesse Olhando”, documentário da jornalista e diretora Gi Ismael, que transforma a dança em linguagem de afeto, liberdade e resistência urbana.
Foto: Natália Di Lorenzo
Filmado em João Pessoa, o curta não apenas mostra pessoas dançando. Ele escuta o silêncio entre os passos, traduz em imagem o que pulsa no peito, ilumina rostos que muitas vezes passam despercebidos. São quatro personagens – Lúcia Aires, Bigode Dançarino, MC Hirlla e Lua Camboatá – que dançam não só com os pés, mas com a vida. E, ao fazer isso, tornam visível um Brasil real, vibrante e plural.
Foto: divulgação.
A estreia de Gi no cinema é também um mergulho profundo na sua própria trajetória. Jornalista com passagens por TV, rádio, web, imprensa e fotografia, ela sempre esteve em movimento. Mas agora, mais do que nunca, faz esse movimento ganhar imagem, som e poesia.
“A dança é um ato de liberdade. É um sussurro contra o peso do mundo.”
Na entrevista exclusiva ao Papo Pop, Gi relembra como a transição para o audiovisual foi natural, quase inevitável. Desde os tempos de faculdade, ela já fazia vídeos independentes, clipes de amigos, registros culturais. Mas esse curta é o seu primeiro projeto autoral completo, realizado com incentivo da Lei Paulo Gustavo.
Foto: Natália Di Lorenzo
“Foi quando eu pude comandar tudo, contratar uma equipe, experimentar. E foi libertador.”
Mas por que a dança? Por que esse foco nos corpos em movimento? A resposta vem carregada de sentimento:
“Sempre admirei quem se entrega na beira do palco, quem dança como se ninguém estivesse olhando. Queria entender o que move essas pessoas, o que faz com que se desprendam da pressão social. Era uma inquietação minha… e virou filme.”
Com longa trajetória como repórter, editora e apresentadora, Gi levou muito da escuta jornalística para o documentário. Mas também soube desapegar:
“No início, montei o filme como se fosse uma reportagem. Off, sonora, estrutura básica. Mas percebi que precisava ir além. Me desprendi do formato tradicional e deixei a narrativa respirar.”
Foto: Natália Di Lorenzo
O resultado é um filme sensível, de ritmo fluido, com trilha original e imagens que mais sugerem do que mostram. Nada é óbvio. Tudo é convite à contemplação.
Corpos que resistem, dançam e pertencem
Foto: Natália Di Lorenzo
Os personagens foram escolhidos com atenção quase artesanal.
“Bigode Dançarino é uma figura marcante da cidade, a Lua traz o embasamento acadêmico da dança, e Lúcia e Hirlla vieram por indicações e se encaixaram com uma verdade linda.”
Foto: Natália Di Lorenzo
Juntos, eles revelam um mosaico de existências que ocupam a cidade não apenas com passos, mas com presença. O documentário faz da cidade palco, e do corpo, um manifesto.
“Fiz esse filme para o público, não para os festivais.”
Apesar de ter sido selecionado para festivais no Brasil e no exterior, incluindo a Índia, Grécia, Los Angeles e agora Miami, Gi conta que o maior prêmio é ver o público se emocionando.
“Recebi mensagens de gente que se viu no filme. Gente que lembra de alguém, ou que queria ser como os personagens. Isso me emociona. Esse era meu objetivo: tocar, dialogar.”
O futuro? Mais imagens, mais afetos, mais danças possíveis.
Gi ainda não tem planos de fazer uma continuação, mas carrega ideias na gaveta, como uma docuficção baseada em uma lenda urbana da Paraíba. “É mais ousado, exigiria tempo e coragem, mas está no meu radar”, diz, com brilho nos olhos.
Enquanto isso, “Como Se Ninguém Estivesse Olhando” segue sua trajetória encantada, com exibições às quartas de julho no Cine Banguê, em João Pessoa, e presença confirmada no Urban Film Festival em Miami.
Porque dançar é existir. E existir em liberdade é um ato político e poético.
Com seu olhar terno e inquieto, Gi Ismael estreia no cinema com um filme que não pede para ser entendido, pede para ser sentido.
E talvez seja isso o mais bonito: como se ninguém estivesse olhando, ela nos faz olhar para o outro, para nós mesmos… e dançar.
Confira a entrevista na íntegra com Gi Ismael:
– Gi, você tem uma longa trajetória no jornalismo e agora também no audiovisual. Como essa transição aconteceu na sua vida?
A transição para o audiovisual nunca foi algo muito marcado, sabe? São áreas que sempre dialogaram na minha carreira. Quando entrei na faculdade de Jornalismo, já comecei a participar de projetos audiovisuais independentes. Gravava clipes para bandas amigas, fazia videocast… O audiovisual sempre esteve presente na minha vida, de diferentes formas,seja na frente das câmeras, seja por trás, como videomaker, função que exerci por bastante tempo. Trabalhei como freelancer fazendo fotos e vídeos durante anos.
Agora, esse projeto foi meu primeiro trabalho autoral, 100% comandado por mim, com uma equipe contratada. Isso só foi possível graças, também, ao incentivo da Lei Paulo Gustavo, que viabilizou a realização do filme.
– O que mais te fascina na linguagem documental?
Acho que o documentário conversa muito com o jornalismo, especialmente por sua vocação informativa. Ele traz à tona histórias extraordinárias escondidas no cotidiano, no aparentemente banal. São histórias que, muitas vezes, passam despercebidas, mas que têm uma força imensa. O documentário oferece essa possibilidade de lançar um olhar sensível sobre o que é real, e isso me encanta.
– Como seu olhar jornalístico influenciou a construção narrativa do documentário?
Acredito que influenciou muito, especialmente na condução das entrevistas. A abordagem dos personagens, a escuta atenta, tudo isso vem da bagagem do jornalismo. Na edição, comecei estruturando o filme de forma bem jornalística, com off e sonora, mas percebi que precisava me libertar disso. Era uma chance de experimentar uma narrativa mais poética, sensorial. O jornalismo me ajudou a sintetizar, a extrair o essencial, mas precisei abrir espaço para a liberdade criativa e entender que aquela não era uma reportagem, era outra coisa.
– De onde surgiu a ideia de explorar a dança como ato de liberdade e expressão urbana?
Essa ideia nasceu de uma inquietação antiga. Desde a adolescência, circulo pela cena cultural paraibana e sempre fui muito observadora. Em shows mais dançantes, notava aquele público na beira do palco que se entregava completamente ao momento. E eu pensava: “Queria ser um pouco mais como essas pessoas”.
Comecei a me perguntar o que movia elas, o que permitia esse desprendimento de tantas pressões sociais. Daí nasceu o desejo de entender, e também de inspirar, quem, como eu, sente essa vontade de se expressar, mas nem sempre consegue.
– O título é inspirado em uma frase popular. Como ela se tornou central para o projeto?
A frase “Dance como se ninguém estivesse olhando” é muito conhecida e carrega um símbolo forte de liberdade. O ato de dançar exige vulnerabilidade, entrega. Essa expressão me pareceu perfeita para traduzir a proposta do filme, que não é apenas sobre dança, mas sobre liberdade individual. Sobre se libertar do olhar alheio e simplesmente ser.
– O filme tem uma abordagem onírica e sensível. Como foi o processo de traduzir sensações subjetivas em imagens?
Desde o início, eu queria uma linguagem poética. Queria que o filme tivesse uma trilha sonora original, que não fosse a música que os personagens estavam dançando na hora, mas algo que capturasse a emoção daquele instante. A ideia era criar uma experiência estética neutra, em que qualquer pessoa pudesse contemplar a beleza do movimento em câmera lenta, sem julgamentos. Um olhar sobre a poesia do corpo em liberdade. Esse objetivo foi concretizado também pela trilha sonora original de feita pelo (meu companheiro de vida e de projetos) Matheus Pimenta e direção de fotografia minha e com Jobson Andrade.
– Como foi a escolha dos personagens? O que te chamou atenção em Lúcia, Bigode Dançarino, MC Hirlla e Lua?
A escolha partiu da observação. Bigode, por exemplo, é uma figura muito presente na cultura local, já era alguém que eu sabia que queria no filme. Lua Campoata é uma profissional da dança que eu já acompanhava e sabia que traria uma voz consistente, com base teórica e prática.
Quis compor um elenco diverso, com diferentes idades, experiências e contextos. Lúcia surgiu por indicação e Hirlla apareceu num momento espontâneo de filmagem — alguém sugeriu, a gente convidou e deu super certo. Era importante representar várias formas de dançar e de viver a cidade.
– Que desafios e aprendizados você viveu ao filmar em espaços públicos de João Pessoa?
Foram muitos desafios. Organizar a equipe, gerenciar os arquivos, conseguir autorizações de imagem… Tudo isso foi novo pra mim. Foi a primeira vez que trabalhei com uma estrutura maior, com equipamento completo, equipe extensa. Aprendi muito na prática, especialmente na pré e pós-produção.
– Como você vê a relação entre arte, lazer e pertencimento na cidade?
A arte é uma forma de resistência, mas também de regeneração. A cidade muitas vezes nos mastiga, nos exaure. Mas ela também pode ser lugar de cura. O documentário fala disso — da necessidade de ocupar os espaços urbanos com beleza, com expressão, com afeto.
– O filme dá protagonismo a pessoas que muitas vezes são invisibilizadas. Por que isso era importante para você?
Porque é o que mais me emociona no retorno do público. Muita gente veio me dizer que se viu ali, que se emocionou, que lembrou de alguém, que gostaria de ser como aquelas pessoas no palco…
Foi um filme feito para o público. Não foi pensado para festival, nem para crítica, nem para nicho de mercado. Foi uma realização pessoal, feita com sentimento — e minha maior felicidade é saber que ele está tocando pessoas. Isso sempre foi a essência do meu trabalho jornalístico também: criar pontes com o público.
– Como o público tem reagido ao documentário? Algum feedback te marcou?
A recepção tem sido linda. Mesmo sendo minha primeira experiência dirigindo um filme, ele já foi selecionado por festivais, exibido em países como Índia e Grécia — e vai passar agora em Miami.
Saber que uma história feita por e sobre quatro personagens da periferia de João Pessoa está viajando o mundo e tocando pessoas é algo que me emociona profundamente. Me faz acreditar ainda mais no poder da arte como espelho e transformação.
– Pretende expandir esse projeto em alguma outra mídia, como série ou instalação?
Ainda não pensei em expandir diretamente esse projeto, mas muita gente me pergunta se vai ter uma parte dois, sugerem nomes, lembram de pessoas que poderiam se encaixar na narrativa.
Tenho outras ideias guardadas, entre elas uma docuficção que mistura elementos da cultura popular da Paraíba com um pouco de documentário e um pouco de ficção. Seria um projeto mais ousado, um média-metragem que exigiria mais tempo e dedicação. Esse documentário foi, de certa forma, meu test drive. Agora quero seguir explorando outros formatos e linguagens.