Redução de recursos do ICMS Cultural expõe desafios e fortalece resistência da cena cultural paraibana

Substituir verbas públicas não é apenas cortar números: é ameaçar a sobrevivência da cultura e a circulação de patrimônios imateriais na Paraíba

A cultura paraibana, rica, diversa e pulsante, enfrenta um novo desafio em 2025. Produtores de eventos culturais denunciam uma redução de mais de 55% nos recursos aprovados pelo Governo do Estado por meio do Edital de Ações Continuadas do ICMS Cultural, promovido pela Secult-PB. Entre os afetados está o tradicional festival Natal na Usina, um patrimônio imaterial da Paraíba, reconhecido por sua importância simbólica, econômica e educativa.

Foto: divulgação.

Em entrevista, Dina Faria, diretora geral da Atua Comunicação Criativa, produtora responsável pelo festival, desabafa:

“Foi estarrecedor. Sempre digo que só acredito nas coisas quando o dinheiro entra na conta, mas a indignação tomou conta de mim. Na hora busquei outros projetos para entender se era algo geral, e percebi que não estávamos sozinhos nessa luta.”

Apesar de ter sido aprovado em 2º lugar no edital, o Natal na Usina sofreu um corte expressivo.

“O festival vai acontecer, mas não da forma que havíamos planejado. Teremos que reduzir dias de programação, reajustar cachês e salários… da curadoria, vamos literalmente para a ‘cortadoria’”, afirma Dina.

A produtora revela ainda que o prazo dado pela Secult para readequação orçamentária foi de apenas sete dias, o que gerou dificuldades adicionais:

“Decidimos vir a público porque é impossível permanecer calado diante de um corte dessa magnitude. Ou recebemos a integralidade dos recursos homologados ou não aceitaremos nada. Não podemos ser coniventes com ações políticas sem republicanismo.”

Dina critica a condução do processo pela secretaria:

“Há um problema gigantesco de comunicação. Editais do ICMS Cultural, assim como da PNAB, têm sido descumpridos nos prazos, e os artistas e produtores apenas querem realizar seus projetos dentro dos cronogramas aprovados.”

Segundo a diretora, a transparência e a gestão do edital deixaram a desejar:

“O programa foi anunciado com toda pompa em março para mais de 4 milhões de pessoas, e cinco meses depois, 41 projetos receberam cortes de 55% sem qualquer comunicação pública adequada. Além disso, há 35% dos recursos discricionários cujo direcionamento não suplementou o edital mais concorrido. Isso é incompreensível.”

Sobre a justificativa de “readequação orçamentária” da Secult-PB, Dina não se convence:

“É como tentar comprar um carro sem ter crédito. Um edital não pode ser lançado sem recursos garantidos.”

O Natal na Usina, realizado desde 2018 via Lei Rouanet e apoios federais, nunca recebeu patrocínio direto do Estado. Dina destaca a importância da isonomia:

“Dinheiro público deve ser tratado de forma pública. Linhas de apoio precisam ser claras, acessíveis e iguais para todos.”

Apesar dos obstáculos, o festival chega à 12ª edição com relevância comprovada.

“A chama da resistência se acendeu ainda mais. Precisamos ser o maior evento das artes paraibanas, defender nossa identidade e garantir que a cultura circule, gere empregos e valorize nossa comunidade”, conclui Dina.

Para ela, a mensagem ao público, artistas e produtores é clara: não desistam.

“Investir em cultura é investir em saúde mental, lazer, criatividade e na própria identidade paraibana. Nossa cultura é gigante, potente e belíssima. Precisamos protegê-la!”

O caso expõe uma discussão maior sobre a importância dos recursos públicos para a sobrevivência da cultura: cortar verbas não afeta apenas números, mas toda a cadeia produtiva, artistas, técnicos, produtores e, sobretudo, o público que consome e se conecta com a arte da Paraíba.

Confira a entrevista na íntegra:

1. Dina, como você recebeu a notícia da redução de 55% nos recursos do edital do ICMS Cultural?

Foi estarrecedor. Eu sempre falo que só acredito nas coisas quando o dinheiro entra na conta bancária, mas, confesso, que o sentimento que inundou foi de indignação. Na hora busquei falar com outros projetos, para entender se era algo geral mesmo.

2. O “Natal na Usina” foi aprovado em 2º lugar no edital e, mesmo assim, sofreu esse corte expressivo. O que isso representa, na prática, para o festival e sua programação?

O Natal na Usina já tem uma parte do financiamento, felizmente. Desde 2018 que realizamos através da Lei Rouanet e sempre conseguimos ter patrocínio via isenção fiscal do governo federal. Este ano, como tínhamos a intenção de aumentar e melhorar a nossa programação, buscamos captar recursos adicionais via Edital do ICMS Cultural. Na prática, o que vai acontecer, é que o Natal na Usina irá acontecer, mas não da forma desejada e que já estava desenhada. Vamos voltar para as planilhas, reduzir dias de programação, reajustar cachês e salários… da curadoria vamos, literalmente, para a cortadoria.

3. A produtora afirmou que recebeu um prazo de apenas sete dias para readequar o orçamento. Quais foram os maiores desafios dessa exigência?

Todos os projetos receberam esse prazo. Posteriormente informaram, que esse era um prazo flexível, o que também me causa estranheza, pois não pode haver flexibilidade de prazos só para quem pergunta, mas deveria ser informado para toda a gente. O nosso maior desafio, na verdade, foi decidirmos vir a público com esta questão. Dos 41 projetos, a Atua Comunicação Criativa foi a proponente que se colocou mediaticamente, o que nos faz pensar na dificuldade que os fazedores de cultura têm em poder falar, sem medo de futuras represálias. Esse é um desafio que precisamos vencer, enquanto cadeia produtiva, pois não vivemos em ditadura e o tempo dos coronéis precisa ser finalizado. A nossa decisão sobre a readequação é uma apenas: ou recebemos a integralidade dos recursos homologados (100.000,00) ou não queremos receber nada, pois não vamos ser coniventes com uma ação política sem republicanismo.

4. Vocês denunciaram problemas no contrato e a falta de respostas da Secult-PB. Como avalia a condução desse processo pela secretaria?

Os problemas não têm sido apenas em relação aos editais do ICMS Cultural. Basta conversar com outros produtores e artistas para percebermos que existe um problema de comunicação gigantesco e que outros editais, como os da PNAB – Política Nacional Aldir Blanc, que é um programa do Ministério da Cultura e Governo Federal, têm tido os prazos sucessivamente descumpridos. A Paraíba foi o primeiro Estado a receber os recursos financeiros, mas está com graves problemas de execução por parte da Secult-PB, não por parte dos fazedores de cultura, que só querem realizar os seus projetos dentro dos cronogramas aprovados.

5. Em sua visão, quais foram as principais falhas de transparência ou de gestão nesse edital específico?

De um programa que foi anunciado com toda a pompa e circunstância, com Governador, deputados, imprensa local, etc, no Convento de São Francisco, em março, merecia ter o mesmo tratamento público em todas as fases. Anuncia um programa, para mais de 4 milhões de pessoas, em março, para, em agosto, notificar 41 pessoas que terão um corte de 55%. O correto seria um anúncio público ou, no mínimo, os 41 projetos serem convocados para uma reunião, onde todas as dúvidas seriam respondidas.

Outra coisa que me incomoda e não consigo compreender, é que o ICMS Cultural é um programa lançado com R$ 52,300 milhões, sendo 65% dos recursos aplicados via Editais (Caminho dos Engenhos – R$ 14 milhões, Patrimônio Histórico – R$ 15 milhões e Ações Continuadas – R$ 5 milhões). Existe uma cota de 35% dos recurso cuja decisão é discricionária, ou seja: o direcionamento da verba é decidido pelo Executivo, num valor de cerca R$ 18,300 milhões. Pergunta 1: porquê não colocam verba da parte discricionária para suplementar o Edital de Ações Continuadas? Pergunta 2: porquê só cortaram o Edital de Ações Continuadas, que foi o que, inclusive, teve mais gente concorrendo?

Sem mencionar que aprovaram bem mais projetos do que aqueles que estavam previstos no Edital… na época, quando saíram os resultados, fiquei feliz de ver que havia mais recurso! Porém, veja, onde o engano nos deixou!

6. A Secult justifica a decisão como uma “readequação orçamentária”. O argumento convence?

Não mesmo. Alguém vai comprar um carro sem ter dinheiro ou crédito? Isso chama-se ter orçamento e ter empenho de orçamento. A Secult-PB, pelos vistos, lançou um edital enganoso, sem ter dinheiro para pagar.

 7. O “Natal na Usina” é um patrimônio imaterial da Paraíba e nunca recebeu apoio direto do Governo do Estado. Como você interpreta essa ausência de apoio?

Nunca pedimos. Essa é a resposta que posso dar. A política de balcão sempre foi algo que me incomodou. Fazer reuniões a portas fechadas para garantir dinheiro para uma determinada coisa, sempre me pareceu muito dúbio e esconso, então, na verdade, nunca me prestei a esse tipo de situação. Acho que é consenso geral que dinheiro público deve ser tratado de forma pública então, o correto, é que existam linhas de apoio específicas e tratadas de forma isonômica, não atrás de portas fechadas.

8. Na sua avaliação, cortes dessa magnitude podem comprometer a cena cultural paraibana a médio e longo prazo?

A cena cultural paraibana já está comprometida há muito, muito tempo, infelizmente. Hoje estamos conseguindo respirar um pouco graças às políticas públicas do Ministério da Cultura e Governo Federal. Apenas elas e somente elas. Mesmo durante a pandemia não existiu nenhum apoio efetivo por parte das instituições públicas, do estado e município de João Pessoa. Inclusive, o Natal na Usina 2020 foi o grande balão de oxigênio naquele ano, pois conseguimos executar, mesmo sem público, mas fazendo transmissões de altíssima qualidade e pagando cachês aos artistas, mas principalmente às equipes técnicas, que foram as mais afetadas.

A situação da cultura paraibana merece um estudo aprofundado de como tudo acontece de pernas para o ar. Temos um dos maiores celeiros criativos do país, mas investimento nulo na criação, difusão e circulação, sem nenhuma capacidade de se entender economia criativa e a importância de termos nossa cultura circulando pelo mundo e voltando para casa, comprando no supermercado da esquina. O que vemos é o inverso: uma exportação absurda de mão de obra criativa! Temos programas importantes de ensino de música, por exemplo? Sim, de extrema importância. Mas esse dinheiro é investido sem qualquer pensamento estratégico de retorno, de geração de empregos.

9. Qual a mensagem que o governo transmite para os trabalhadores da cultura ao promover esse tipo de redução?

Os trabalhadores da cultura, os que estão atentos, sabem bem que a mensagem é que permaneceremos ignorados e tendo que esticar a mão. João Azevêdo, Governador, nunca aceitou ter uma audiência com o Fórum dos Fóruns de Cultura. Está chegando ao final de um segundo mandato sem nunca ter ouvido a sociedade civil. Acho que esse recado ficou bem claro lá no início da sua gestão.

10. A Atua Comunicação já anunciou que vai manter o festival com apoio da Lei Rouanet e de parceiros federais. O que isso revela sobre a diferença de posturas entre as esferas estadual e federal no tratamento da cultura?

Isonomia e republicanismo. São as palavras que me parecem mais prementes de serem utilizadas. Nem durante o governo Bolsonaro, que criou centenas de obstáculos, inclusive assinou em baixo de Temer a morte do Ministério da Cultura, passamos por uma situação destas. Ano passado o Natal na Usina recebeu uma oficina do MinC, em João Pessoa. Temos uma relação institucional ótima com os órgãos federais e nossas prestações de contas vêm sido aprovadas!

 11. Apesar dos obstáculos, o festival chega à sua 12ª edição com relevância e impacto comprovados. Como manter a chama acesa diante de tantos desafios?

Acho que a chama se acendeu mais e fez relembrar a importância da resistência. Eu sou a pessoa que não aceita um “não” injustificado, nunca soube. E sempre questionei, a vida toda, as injustiças. Então, mais do que nunca, nos cumpre sermos o maior evento das artes paraibanas pois, na real, nós é que estamos realizando políticas públicas importantes! A cultura tradicional e popular da Paraíba sabem bem da importância do Natal na Usina, a música, o teatro, o circo, a contação de histórias, etc. Não existe nenhum outro evento na Paraíba com a dimensão simbólica e econômica que nós temos. E vamos cuidar muito bem dessa preciosidade que é defendermos nossa identidade!

12. Que recado você deixaria aos artistas, produtores e ao público que acompanha de perto essa luta pelo fortalecimento da cultura paraibana?

Não desistam! Conheço alguns artistas que já estavam jogando a toalha no chão e que, por conta de projetos que realizamos, enxergaram sua força, criatividade e se sentiram reconhecidos. O público, muitas vezes, não consegue acessar algumas coisas, além das luzes de um palco e o brilho de um espetáculo, mas precisamos que o público entenda que sem fomentarmos a cultura paraibana, vamos perder a nossa identidade coletiva e o que nos faz ser paraibanos. Investir em cultura é investir em saúde mental, em direito ao lazer, ao ócio criativo. A cultura é o nos define enquanto sociedade, que gera empatia perante o outro, o que nos faz emocionar e experimentar sensações. A cultura paraibana é gigante, potente, belíssima e criativa! Não podemos desistir!

NOTA da Secult-PB:

Em nota, a Secretaria de Cultura disse que a redução é uma “readequação orçamentária” decorrente de ajustes necessários ao teto de renúncia fiscal estabelecido para o programa. “Essa decisão tem caráter exclusivamente técnico e administrativo e visa preservar a isonomia entre todos os proponentes, garantindo que o processo continue justo e equilibrado”, disse.

A Secult disse que busca assegurar a continuidade das políticas públicas de incentivo à cultura, permitindo que o maior número possível de iniciativas contempladas mantenham sua execução. “Ao invés de reduzir o alcance do edital, a readequação possibilita que os recursos sejam distribuídos de forma responsável, evitando prejuízos irreversíveis para agentes e organizações culturais em todo o estado”, afirmou a secretaria.

A Secretaria reforça ainda que permanece à disposição dos proponentes e da sociedade para prestar esclarecimentos e reafirma seu compromisso com a transparência, a eficiência administrativa e a valorização da cultura paraibana.