O silêncio durou seis anos, mas não foi vazio. Entre pausas, transformações e distâncias, a Flotilha em Alta-terra guardou em suas velas um vento antigo que hoje sopra com força renovada. Nesta sexta-feira, 15 de agosto de 2025, a banda paraibana lança “Geburah”, seu primeiro material desde 2019. Não é um retorno triunfal, tampouco um simples adeus. É, como eles mesmos definem, “apenas um cartão postal, um retrato do último porto onde chegamos”.

Composição de Barbo, a faixa foi gestada entre 2019 e 2022, num período de intensas mudanças políticas e pessoais. Gravada no estúdio Gota Sonora, com captação de Arizera e masterização de Renato Oliveira, “Geburah” é resultado de um encontro criativo que sobreviveu ao tempo. Gabriel Reisenden, Arizera, Cainã e Marcos Matheus assinam o arranjo que sustenta a base poética da letra com texturas densas, mas permeadas por movimentos sutis. É uma obra em que peso e leveza se encaram de frente e, em vez de se anularem, se completam.
A música mergulha em um tema que não se prende a calendários: viver sob um sistema opressor. “Geburah” expõe feridas, revela tensões e reconhece a exaustão de resistir dia após dia. Mas o refrão oferece um antídoto, uma metáfora poderosa: dançar, mesmo nas dificuldades. Aqui, dançar não é ato literal, mas gesto simbólico. É transformar dor em movimento, inércia em ação, sufoco em arte. É, nas palavras da própria banda, “como acordar de novo”.

A produção é precisa em equilibrar a dureza das camadas sonoras com elementos rítmicos que quase empurram o ouvinte a se mover. O contraste é o coração da faixa: uma lembrança de que resistência não é só peso, é também fluidez.
O lançamento é também um presente tardio. A Flotilha revela que “Geburah” e um segundo single, previsto para setembro, foram compostos e gravados anos atrás. Ficaram guardados como mensagens engarrafadas, esperando a hora certa de tocar o mar.
“São mensagens antigas, e não sabemos se os destinatários ainda estão à espera. Mas se estiverem, que saibam: estivemos aqui, e foi assim que soamos pela última vez”, dizem.
O futuro da banda permanece incerto. Não há previsão de shows nem de retomada da estrada. Mas a ausência de planos não esvazia o gesto: entregar essas músicas é encerrar um capítulo com clareza e delicadeza.
“Isso não é sobre retornar. Também não é sobre dizer adeus. É um registro de onde estivemos, de como soamos e do que queríamos dizer”, explicam.
Mais que um lançamento musical, “Geburah” se posiciona como manifesto e memória. Um lembrete de que há potência no coletivo, na arte e na persistência. No fone de ouvido, ela ecoa como um farol no horizonte: resistir também é aprender a dançar com a vida, e fazer a vida dançar de volta.
Entrevista na íntegra com a Flotilha em Alta-terra
Depois de 6 anos, o que motivou a Flotilha em Alta-terra a voltar a lançar material agora?
Não foi um retorno pensado como volta triunfal, mas um gesto de conclusão. Geburah e o próximo single já estavam prontos, como cartas que escrevemos e engarrafamos há anos. Decidimos finalmente lançá-las ao mar, não para retomar uma rota, mas para registrar o último porto onde chegamos.
Como foi o reencontro criativo da banda após tanto tempo?
Ele aconteceu ainda antes da pausa. Geburah foi escrita entre 2019 e 2022, num período de mudanças profundas. Gravamos no Gota Sonora, com Arizera na captação e Renato Oliveira na masterização, e cada um trouxe um pedaço de si para o arranjo. Mesmo distantes, ainda navegávamos sob o mesmo céu. A ideia era transformar a história de Alta-terra, ilha lírica fictícia de onde se tiravam parte das músicas, em ruínas e dela nascer uma megalópole chamada Bellona. Esse lugar seria governado por um ditador chamado Fausto Calígula. A flotilha seria um movimento de resistência a esse governo opressivo. Quem sabe, em breve, não possamos encontrar alguns códex contando essa história por aí?
O texto de anúncio é muito poético. Ele reflete mais um fechamento de ciclo ou um novo começo?
Um fechamento. Mas não como quem apaga a luz e tranca a porta. É um cartão postal, um retrato de onde estivemos, com a música funcionando como registro e despedida. O futuro é incerto, mas essas canções encerram um capítulo com a clareza de quem sabe o que queria dizer.
Vocês falam de “mensagens engarrafadas”, são composições que ficaram guardadas desde antes da pausa?
Sim. São mensagens antigas, compostas, arranjadas e gravadas anos atrás. Geburah, por exemplo, carrega o peso e o frescor daquele momento. É como abrir uma garrafa e sentir o aroma de um tempo passado. No caso, de um tempo que poderia ser.
O que mudou no som e na identidade musical da Flotilha nesses anos?
A essência segue: densidade rítmica, peso emocional e um movimento que convida a seguir adiante mesmo na adversidade. Talvez hoje escutemos nossos próprios trabalhos com mais consciência do que cada detalhe significava, e Geburah é uma síntese disso, com força e vulnerabilidade lado a lado. Quanto ao estilo, nós abrimos mão daquele soft-pop. Estávamos vivendo um governo fascista e não havia muito clima para sonhos, amores e carpe diems. Abríamos as notícias todos os dias para saber se o presidente seria impedido. Geburah especificamente era para sair na virada de 2022 para 2023. Essa era a mensagem da música quando falamos “vai ser como acordar de novo”.
Que novidades o público pode esperar desse retorno? Teremos músicas inéditas, regravações ou colaborações?
Serão dois singles, Geburah agora e outro em setembro, que encerram o silêncio. Não há regravações nem colaborações planejadas. São as últimas mensagens que estavam na gaveta e precisavam tocar a água.
Há previsão de shows para marcar essa volta aos palcos?
Não. Esse momento é sobre lançar essas canções, não sobre voltar aos palcos. É mais uma despedida musical do que um retorno à estrada.
Como vocês veem o cenário da música independente hoje em comparação a 6 anos atrás?
Mudou muito. Há mais ferramentas para criar, lançar e divulgar música, mas também há um mar muito mais denso e agitado para navegar. A atenção do público está mais fragmentada, e isso exige ainda mais autenticidade. Gostaríamos de voltar a ver as casas cheias e João Pessoa eclodindo de bandas como em 2019. Acho que todo mundo está um pouco cansado de dar murro em ponta de faca e precisamos voltar a nossa atenção para como chegar aos mais jovens, para incentivar o acesso à cultura e produção artística. João Pessoa está cada vez mais populosa e recheada de migrantes sedentos por conhecer algo novo que possa mostrar aos amigos e familiares de suas cidades.
O que vocês mais sentiram falta durante o tempo longe dos lançamentos e do público?
Do eco que a música provoca. Daquele momento em que alguém escuta e sente que a letra fala da sua própria vida. Essa ponte invisível é o que mais nos move.
Se pudessem mandar uma “mensagem engarrafada” para os fãs que esperaram todo esse tempo, qual seria?
Isso não é sobre retornar. Também não é sobre dizer adeus. É apenas um cartão postal, um retrato do último porto onde chegamos. São mensagens antigas, e não sabemos se os destinatários ainda estão à espera. Mas se estiverem, que saibam: estivemos aqui, e foi assim que soamos pela última vez. Talvez dizer adeus seja voltar para casa.