
Há artistas que iluminam caminhos. Há artistas que abrem frestas. E há aquelas que, como Jorja Moura, fazem das frestas portais inteiros. DJ, jornalista musical, produtora cultural e criadora de universos, a Morcegona transborda as fronteiras que costumam tentar limitar corpos, estéticas e modos de existir. Sua obra não se encaixa: ela expande.

Nascida e criada em João Pessoa, moldada por festas familiares onde a música era a primeira língua, Jorja aprendeu cedo que som é território de encontro. Em suas palavras, “nas festas e churrascos em família, a música era um ponto chave, que conectava todo mundo a dançar e se divertir. Fui crescendo e entendendo o poder que essa ferramenta tão ancestral e poderosa tinha sobre as pessoas”.
É desse caldo afetivo, misturado à curiosidade insaciável da adolescente que passava tardes inteiras desbravando discos na loja Música Urbana, que surge o que ela mesma chama de Jorjapédia: um arquivo vivo, em constante expansão, que alimenta sets, ideias e narrativas.
A Morcegona nasce oficialmente anos depois, quase por acaso, quando foi convidada a tocar pela primeira vez no Empório.
“Eu não sabia nem por onde começar a mexer em uma CDJ. Entrei em pânico, mas o set fluiu. Na minha cabeça era como se eu estivesse tocando aquelas músicas para a minha família dançar.” A persona tímida encontrou nas pick-ups uma zona de libertação. A artista encontrou a sua voz.
A travessia de ser trans na música: coragem como fundamento

Jorja não foge de seu lugar no mundo. Ela o confronta, reconfigura, ressignifica. E reconhece o peso de ser uma mulher trans num território historicamente hostil.
“Eu me sinto uma hacker. Não por vontade própria, mas porque acabei quebrando barreiras e derrubando portas que eu nem imaginava um dia derrubar. Não me sinto pioneira, apesar de muitas vezes ter sido a primeira naquele lugar.”
Há ironia, força e ternura quando ela completa, ecoando a amiga Catto:
“Nós não somos vítimas de nada, somos as vilãs. Isso me traz paz.”
O gesto é político e poético. Como sua própria trajetória.
A urgência de ocupar espaços e redimensionar narrativas

Para Jorja, a luta não é individual. É coletiva, ancestral, contínua.
“Ainda vivemos em um território coronelista, machista e extremamente preconceituoso. Quanto mais cedo reconhecermos isso, mais rápido podemos reorganizar esse sistema.”
Ela cita Fernanda Young, transformando literatura em palavra de ordem:
“Não tem nada mais indigesto para um mundo dominador do que a liberdade de uma mulher.”
E continua, exaltando as artistas trans que hoje brilham na Nordeste:
“Bixarte, A Fúria Negra, Janvita, IDLibra, Dandarona, Paulete Lindacelva… dialogam com a ancestralidade travesty, mas também falam de futuro. De novas perspectivas para sonharmos juntas.”
Documentar, segundo ela, é também existir.
“Meu papel como comunicadora e pesquisadora de música é registrar toda a nossa história.”
A música como narrativa, território e feitiço
O trabalho de Jorja é, antes de tudo, narrativo. Seus sets contam histórias, suas escolhas tecem constelações improváveis e fascinantes.
“Agradeço à minha versão adolescente nerd da música. De alguma forma tento construir essa narrativa nos meus sets, que falam de Madonna, Björk, Grace Jones, Depeche Mode, Sylvester, mas também de Donna Giles, ícone trans dos anos 90, e de artistas como Linn da Quebrada, Ventura Profana, IDLibra.”
Para ela, o inesperado é método:
“Gosto de misturar a Disco nova-iorquina com Votú, que brinca com funk e techno, ou com Taj Ma House. Às vezes o rock dá match com a House ou o Techno, e eu me sinto confortável com isso, porque sou uma grande rockeirona riot grrrl que brinca com música eletrônica.”
O choque necessário: arte, anarquia e coragem

Entre tantas experiências marcantes, o projeto Vida de Clubber ocupa um lugar especial.
“Eu, Yorran, Ycaro e Parajeau tocamos o terror nessa cidade em 2018 e 2019. Não só pelo que discotecávamos, mas pelas nossas performances.”
Ela ri ao lembrar:
“Chegar em uma festa pop todas ensanguentadas, vestidas de luto, com um caixão na mão escrito democracia… Era algo extremamente corajoso. E eu não me arrependo de nada.”
Maddam Music e o futuro que se constrói juntas

A artista define sem hesitação a importância dessa irmandade:
“A música eletrônica hoje é feita por mulheres dissidentes e marginalizadas. É fundamental construirmos novas narrativas. Minha avó dizia: se só tem tu, vai tu mesmo. Somos as próprias viradas de chave.”
No coletivo Maddam Music, ela aprende, compartilha, impulsiona e se reconhece.
O Som Delas: rádio como retomada, gesto punk e reparação

O programa que apresenta na Frei Caneca FM nasceu de uma inquietação visceral.
“O Som Delas surgiu de uma inquietação minha, de Priscila Ribeiro e de Viviane Menezes. Mulheres punks em um cenário majoritariamente masculino.”
Ela explica:
“O programa é um holofote para Pernambuco, mas também trazemos mulheres do Nordeste e do mundo conectadas ao espírito Faça Você Mesmo do movimento Riot Grrrl.”
E lembra da potência dessa missão:
“Falamos sobre mulheres fundamentais para o Manguebeat que muitas vezes são esquecidas ou não são chamadas para festivais. Nosso propósito é trazer essa música de volta ao jogo. É puro punk rock.”
Produção cultural como extensão da própria alma

Sobre sua atuação com Music Society Prod e LEOA, ela resume com afeto:
“Com LEOA foi muito natural. Ela queria alguém que conversasse com essa fase wild up da vida dela. Acho a Luísa extremamente punk na essência. Carisma, originalidade e Faça Você Mesmo.”
E sobre o coletivo:
“O Music Society Prod pensa novas narrativas para João Pessoa. É sobre construir futuro.”
O que vem aí: terror, glamour e psicodelia

Jorja sorri antes de entregar os spoilers:
“Queremos expandir O Som Delas e aprofundar ainda mais o protagonismo feminino na música nordestina.”
E conclui com brilho nos olhos:
“Tocarei o terror e o glamour em lugares já confirmados, como o Baile de Natal da Usina Energisa, numa noite dedicada ao rock eletrônico progressivo psicodélico. Uma coisa meio Pink Floyd com Ave Sangria, Cátia de França com Fleetwood Mac.”







